EXPLICANDO OS «JOGOS AFRICANOS» - PALAVRAS DE JNP
Senhoras e Senhores, Queridos Amigos:
Quero começar por agradecer ao Francisco Seixas da Costa, as suas palavras sobre mim e sobre estes JOGOS AFRICANOS. Somos de facto muito amigos, apesar de itinerários ideológicos e políticos bem diferentes. E para além desse comum sentido de humor e de independência crítica, de pessoas livres, temos mesmo que pensado e vivido de modos diferentes, uma idêntica e indefectível lealdade a Portugal e aos seus interesses. E a sua amiga e generosa disponibilidade de atravessar o Atlântico num fim de semana para vir apresentar este livro.
Depois, como é da praxe, mas aqui também do fundo do coração, quero agradecer a todos que aqui estão e fazem parte do livro, porque entraram na história que ele conta: muito especialmente à Arminda, viúva e à Micaela filha do Alfredo Aparício, um amigo inesquecível e um grande português, a quem são dedicados estes Jogos Africanos; e ao Sr. António Luís Alves, o “Mister Banana”, e ao Zé Penha Rodrigues, pelo seu apoio logístico na retirada estratégica para o Sul. E claro à Zézinha que fez essa e outras caminhadas complicadas comigo. E neles e através deles a essa legião de pessoas que nestes anos partilharam connosco estas histórias.
Isto quanto à história. Quanto ao livro quero agradecer primeiro ao José Calvin e à Sofia Monteiro e a toda a equipa da Esfera dos Livros que são uns editores disponíveis, sensíveis, com quem trabalhar é um gosto. E depois à Inês Pinto Basto que, desta vez, foi mais que uma colaboradora, uma verdadeira co-autora, com um trabalho marcado pela inteligência, arte e dedicação. E que conseguiu disciplinar e ordenar além da minha escrita, o meu modo de produção. E à Isabel Barata Feio que há muitos anos converte, pacientemente, os meus hieróglifos em letra de forma e passou e repassou este texto.
Estes JOGOS AFRICANOS têm origem, como outras coisas importantes da minha vida, mais no acaso que na predestinação.
A ESFERA DOS LIVROS – na pessoa do José Calvin e da Sofia Monteiro – satisfeitos com o meu “Salazar – O outro Retrato” convidaram-me, faz um ano, para escrever uma História da África Portuguesa.
Era uma proposta sedutora, para contar uma história de fôlego, uma história de 560 anos – que começava em 1415 naquela manhã alegre da conquista de Ceuta e seguia com as caravelas do Infante a passarem o Bojador e acabava com o trágico regresso dos Boeings com os retornados da Ponte Aérea em 1975.
Garanti a colaboração da Inês, e comecei a reler as viagens do Cadamosto e a Crónica da Guiné do Zurara. Para inspiração e para agarrar o espírito do tempo fui ao Museu das Janelas Verdes rever o Infante D. Henrique dos painéis de S. Vicente. E outra vez me intrigou aquele seu chapéu, único… Um amigo sábio – talvez o Martim de Albuquerque – disse-me que era um chapéu borgonhês! Nunca vira outro assim em Portugal.
Mas enquanto ia meditando nestes e noutros enigmas menos frívolos da Grande Aventura Portuguesa, fui escrevendo uma introdução, recriando e relembrando os meus encontros e experiências africanas. Desde imagens de infância, de exploradores e expedições coloniais, e da leitura das Minas de Salomão, à minha chegada à África real, em Angola, em 1974, nos meses do fim do Império. Um prefácio que foi crescendo até chegar às 60 páginas.
As pessoas que tiveram acesso a este esboço e os editores acharam que, apesar do enigma do chapéu do Infante e dos chapéus coloniais, apesar da história da ocupação, da fundação das cidades e dos caminhos de ferro no século XX, era talvez mais interessante – ou mais urgente – para aqui e para agora, contar a história mais próxima. E, para isso, desenvolver a tal introdução. Que era a história que aconteceu na África que tinha sido “portuguesa” depois de Portugal e dos portugueses, uma história de conflitos, de intriga, de guerra civil, de engenharias da paz. E o lugar dessa África lusófona, no Grande Jogo do mundo. O chapéu do Infante e as aventuras, venturas e desventuras da colonização e da descolonização podiam esperar.
Foi assim que apareceu este livro.
Baptizei-o à nascença, o que não é meu costume. Mas desta vez roubei o título – Jogos Africanos – a um escritor para mim muito importante – Ernst Jünger. Os seus Afrikanische Spiele são de 1936, e neles conta a fuga de casa, adolescente, para a Legião Estrangeira francesa. Eu fui, homem feito e pai de filhos, como voluntário, para o Exército Português – o que não é a mesma coisa. Mas roubei-lhe o título, conscientemente, como uma homenagem e um sinal cabalístico de identidade.
Agora o livro, a substância. Há dias ouvi o Marcello Mathias dizer que um autor não deve explicar ou falar do seu livro! Concordo. A partir do momento que o escreve, que o acaba o autor deve-o deixar ir à vida, como o Deus de Leibniz terá feito com o mundo. O livro vale o que vale: depois de escrito, é dos editores, dos leitores, dos críticos. De todos menos do autor.
Mas se não deve falar do texto, o autor pode – e deve – explicar o contexto. Quando pelo telefone dizia a alguém o que era o livro – e disse que eram as minhas memórias de África – a Zézinha, deu-me um ralhete. Que ninguém queria saber de memórias para nada! Que este livro era uma história da África lusófona e da África Austral dos últimos trinta anos, uma história em que eu tinha estado presente e participante.
É verdade. A minha memória e a minha história são só um fio condutor da memória e da história de Angola, de Moçambique, da África Austral entre a Descolonização portuguesa e o fim das guerras civis. Porque nas “memórias” passeamos o nosso olhar, de fora para dentro e de dentro para fora, e vamo-nos entregando a considerações históricas, psicológicas, literárias, humorísticas, sobre paisagens, pessoas, amigos, inimigos, coisas importantes ou que achamos importantes. Mas nós somos o centro da história.
Não é o caso de Jogos Africanos. Aqui eu não andei à procura do mundo nem o mundo à minha procura.
Escrevi primeiro para acertar contas com o meu e nosso passado e tentar percebê-lo. Descubro-me melhor – no duplo sentido de me encontrar e de me destapar – a escrever. A minha experiência é paralela à de muitos da minha geração, geração no sentido cronológico e ideológico: a dos portugueses nascidos no imediato pós-guerra, formados existencialmente e intelectualmente, nos anos 60, com guerras perdidas – Argélia, África, Vietname – escritores reencontrados ou descobertos – Nietzsche, Sorel, Péguy, Proust, Scott Fitzgerald, Hemingway, Huxley, Malraux, Jünger, Drieu de la Rochelle; mais os clássicos portugueses de Camilo a Eça e a Pessoa; e os autores franceses e italianos do meio do século XX, os filmes italianos e americanos de 60 e 70, a música do Brel, dos Beatles e dos Rolling Stones, as cidades - Paris, Londres, Roma, Madrid… quase só Europa.
Por cá, nesta nossa polis, foram as lutas académicas, as guerras da cultura e a guerra de África. Fui a todas! À de África, no fim. Como achávamos que lutávamos – já na Faculdade - em minoria e ainda por cima contra “o sentido da História”, habituámo-nos a resistir e a preparar a guerrilha. Tive sempre a sensação de pertencer àqueles grupos especiais - ou menos especiais - que cobrem as retiradas: rebentam as pontes, minam os itinerários e fazem umas emboscadas às vanguardas inimigas para lhes retardar a marcha. Se ficarmos pelo caminho, ninguém quer saber de nós. Somos expendable. E como só retardámos, não impedimos o avanço, se temos sucesso ninguém dá por isso. Não nos condecoram nem nos agradecem. Habituámo-nos assim.
Esta é a primeira parte desta história – que acabou no exílio - na África do Sul, no Brasil, em Espanha. Depois fui para a história dos outros, para os lugares onde a História ia continuar a fazer-se. Nos anos 80 percebi que essa era a forma mais certa – e a única possível – de continuar este jogo, já que não não me curava dele e do tal “mal de l’Afrique” de que falava Psichari. E tinha questões a arrumar. Sobretudo comigo.
Fomos para a Guerra Fria com essa ideia de acertar contas. Era uma guerra de outros, mas em que podíamos fazer a diferença. Como combatentes “internacionais”, internacionalistas. Como o Bin Laden foi combater os russos para o Afeganistão, os comunistas foram para Espanha em 1936 e os zuavos pontifícios defender o Papa, no século XIX. Foi assim que entrámos a ajudar os “nossos” freedom fighters na África Austral.
Depois, por um processo que espero ter conseguido escrever e descrever no livro – e foi a primeira vez que eu próprio comecei a entendê-lo bem – as coisas mudaram: e já não queríamos ganhar a guerra – ou que “os nossos” ganhassem – mas queríamos a paz. Para todos – os nossos e os outros. E a partir da curiosidade e da vontade de a conseguir, tive a experiência e o privilégio, que também aqui ficam contados, de fazer o vaivém amigos-inimigos, azuis e encarnados, entre trégua e guerra, tendo por rede e segurança os “factores humanos” de todos – de lealdade, honra - e de interesse claro! Para um pessimista antropológico, criado na desconfiança hobbesiana do outro, não estive mal.
Porque as ideologias e as convicções políticas não escolhem nem delimitam o bem e o mal. E – ao contrário da convicção adolescente – em que as bandeiras e os partidos dividem os “bons” dos “maus”, a vida não é assim. E há um capítulo da ética – a “ética dos inimigos” – que é mais importante que muitas outras éticas faladas nelas glorificadas. Porque é o que nos une é só a nossa condição humana.
Acabámos por estar, assim, no centro de muitas coisas acontecidas no último quartel do século XX: o fim do Império português, o exílio e conspirações dos portugueses em três países e três continentes, África do Sul, Brasil, Espanha, África, América, Europa. E vimos nascer em Washington a revolução conservadora e assistimos ao final da Guerra Fria em Berlim, e às guerras civis de Angola, de Moçambique e da Guiné-Bissau.
De fascinados pelas ideias que éramos, passámos a estar mais atentos também às pessoas e às coisas. Há, nesta narrativa, uma evocação dessas pessoas –quase todas ainda vivas, mas outras mortas e violentamente – como Evo Fernandes, Ansumane Mané, Jonas Savimbi, Salupeto Pena, Jeremias Chitunda, Wilson Santos, tantos…
E também se fala da aprendizagem do exílio, que é sempre – mesmo quando as alternativas são a prisão, o silêncio e a humilhação dos vencidos não convencidos –uma humilhação e uma via-sacra. Foi aí que experimentámos outra forma de conhecer e amar a pátria, de fora para dentro, como lugar estranho e distante. E pensámos noutros, de outras bandeiras, que passaram pelo mesmo.
Depois nestas terras e nestas guerras, encontrámos e descobrimos gente extraordinária entre os nossos e os outros, entre amigos e inimigos. E eles descobriram-nos a nós.
E reaprendemos a ver as coisas e o mundo – a olhar a terra e a olhar para o céu aberto que é um privilégio da África: nas noites do Leste de Angola, nas luzes de Joanesburgo, na Ilha de Luanda – falando com comandantes guerrilheiros, soldados perdidos e generais governamentais; e voando nos Cessnas ou Dakotas por aquele céu azul pastel ou ferrete (não percebo muito de azuis), que me lembrava o céu dos poemas de Alberto Caeiro e vermos o sol nascer do Índico e desaparecer no Atlântico.
Para este livro, que levou um ano a escrever e finalizar, ouvi muita gente e entre outras, as pessoas que fazia sentido ouvir. Nem todas. Estas entrevistas, de que uma pequena parte foi utilizada ou transcrita directamente, foram também uma experiência humana e intelectual importante. Com grande confiança e generosidade, essas pessoas – uns velhos amigos, outros velhos inimigos, outros nem uma coisa nem outra - contaram-me as suas histórias nesta história, fizeram a narrativa com grande à vontade. Pela minha parte, usei os testemunhos com sobriedade e prudência. E nalguns casos, e com perda talvez para algum sensacionalismo, retirei o que sendo interessante poderia ser nocivo para os próprios ou terceiros.
Porque escrever sobre temas e factos que são sensíveis, de vida e de morte, é um exercício no fio da navalha ou do arame. Não podemos trair a confiança de pessoas que, quando trataram coisas connosco, não estavam a pensar que um dia, mesmo muito depois, contaríamos o que disseram ou fizeram então. Respeitei essa regra.
Finalmente – e sem pretensões – acho que devia este livro ao meu país, aos meus amigos, à minha Família, aos vivos e sobretudo aos mortos, que perderam tudo nestes Jogos Africanos. É também uma homenagem à memória deles. De todos.
Muito Obrigado.
Jaime Nogueira Pinto
24 de Novembro de 2008
Quero começar por agradecer ao Francisco Seixas da Costa, as suas palavras sobre mim e sobre estes JOGOS AFRICANOS. Somos de facto muito amigos, apesar de itinerários ideológicos e políticos bem diferentes. E para além desse comum sentido de humor e de independência crítica, de pessoas livres, temos mesmo que pensado e vivido de modos diferentes, uma idêntica e indefectível lealdade a Portugal e aos seus interesses. E a sua amiga e generosa disponibilidade de atravessar o Atlântico num fim de semana para vir apresentar este livro.
Depois, como é da praxe, mas aqui também do fundo do coração, quero agradecer a todos que aqui estão e fazem parte do livro, porque entraram na história que ele conta: muito especialmente à Arminda, viúva e à Micaela filha do Alfredo Aparício, um amigo inesquecível e um grande português, a quem são dedicados estes Jogos Africanos; e ao Sr. António Luís Alves, o “Mister Banana”, e ao Zé Penha Rodrigues, pelo seu apoio logístico na retirada estratégica para o Sul. E claro à Zézinha que fez essa e outras caminhadas complicadas comigo. E neles e através deles a essa legião de pessoas que nestes anos partilharam connosco estas histórias.
Isto quanto à história. Quanto ao livro quero agradecer primeiro ao José Calvin e à Sofia Monteiro e a toda a equipa da Esfera dos Livros que são uns editores disponíveis, sensíveis, com quem trabalhar é um gosto. E depois à Inês Pinto Basto que, desta vez, foi mais que uma colaboradora, uma verdadeira co-autora, com um trabalho marcado pela inteligência, arte e dedicação. E que conseguiu disciplinar e ordenar além da minha escrita, o meu modo de produção. E à Isabel Barata Feio que há muitos anos converte, pacientemente, os meus hieróglifos em letra de forma e passou e repassou este texto.
Estes JOGOS AFRICANOS têm origem, como outras coisas importantes da minha vida, mais no acaso que na predestinação.
A ESFERA DOS LIVROS – na pessoa do José Calvin e da Sofia Monteiro – satisfeitos com o meu “Salazar – O outro Retrato” convidaram-me, faz um ano, para escrever uma História da África Portuguesa.
Era uma proposta sedutora, para contar uma história de fôlego, uma história de 560 anos – que começava em 1415 naquela manhã alegre da conquista de Ceuta e seguia com as caravelas do Infante a passarem o Bojador e acabava com o trágico regresso dos Boeings com os retornados da Ponte Aérea em 1975.
Garanti a colaboração da Inês, e comecei a reler as viagens do Cadamosto e a Crónica da Guiné do Zurara. Para inspiração e para agarrar o espírito do tempo fui ao Museu das Janelas Verdes rever o Infante D. Henrique dos painéis de S. Vicente. E outra vez me intrigou aquele seu chapéu, único… Um amigo sábio – talvez o Martim de Albuquerque – disse-me que era um chapéu borgonhês! Nunca vira outro assim em Portugal.
Mas enquanto ia meditando nestes e noutros enigmas menos frívolos da Grande Aventura Portuguesa, fui escrevendo uma introdução, recriando e relembrando os meus encontros e experiências africanas. Desde imagens de infância, de exploradores e expedições coloniais, e da leitura das Minas de Salomão, à minha chegada à África real, em Angola, em 1974, nos meses do fim do Império. Um prefácio que foi crescendo até chegar às 60 páginas.
As pessoas que tiveram acesso a este esboço e os editores acharam que, apesar do enigma do chapéu do Infante e dos chapéus coloniais, apesar da história da ocupação, da fundação das cidades e dos caminhos de ferro no século XX, era talvez mais interessante – ou mais urgente – para aqui e para agora, contar a história mais próxima. E, para isso, desenvolver a tal introdução. Que era a história que aconteceu na África que tinha sido “portuguesa” depois de Portugal e dos portugueses, uma história de conflitos, de intriga, de guerra civil, de engenharias da paz. E o lugar dessa África lusófona, no Grande Jogo do mundo. O chapéu do Infante e as aventuras, venturas e desventuras da colonização e da descolonização podiam esperar.
Foi assim que apareceu este livro.
Baptizei-o à nascença, o que não é meu costume. Mas desta vez roubei o título – Jogos Africanos – a um escritor para mim muito importante – Ernst Jünger. Os seus Afrikanische Spiele são de 1936, e neles conta a fuga de casa, adolescente, para a Legião Estrangeira francesa. Eu fui, homem feito e pai de filhos, como voluntário, para o Exército Português – o que não é a mesma coisa. Mas roubei-lhe o título, conscientemente, como uma homenagem e um sinal cabalístico de identidade.
Agora o livro, a substância. Há dias ouvi o Marcello Mathias dizer que um autor não deve explicar ou falar do seu livro! Concordo. A partir do momento que o escreve, que o acaba o autor deve-o deixar ir à vida, como o Deus de Leibniz terá feito com o mundo. O livro vale o que vale: depois de escrito, é dos editores, dos leitores, dos críticos. De todos menos do autor.
Mas se não deve falar do texto, o autor pode – e deve – explicar o contexto. Quando pelo telefone dizia a alguém o que era o livro – e disse que eram as minhas memórias de África – a Zézinha, deu-me um ralhete. Que ninguém queria saber de memórias para nada! Que este livro era uma história da África lusófona e da África Austral dos últimos trinta anos, uma história em que eu tinha estado presente e participante.
É verdade. A minha memória e a minha história são só um fio condutor da memória e da história de Angola, de Moçambique, da África Austral entre a Descolonização portuguesa e o fim das guerras civis. Porque nas “memórias” passeamos o nosso olhar, de fora para dentro e de dentro para fora, e vamo-nos entregando a considerações históricas, psicológicas, literárias, humorísticas, sobre paisagens, pessoas, amigos, inimigos, coisas importantes ou que achamos importantes. Mas nós somos o centro da história.
Não é o caso de Jogos Africanos. Aqui eu não andei à procura do mundo nem o mundo à minha procura.
Escrevi primeiro para acertar contas com o meu e nosso passado e tentar percebê-lo. Descubro-me melhor – no duplo sentido de me encontrar e de me destapar – a escrever. A minha experiência é paralela à de muitos da minha geração, geração no sentido cronológico e ideológico: a dos portugueses nascidos no imediato pós-guerra, formados existencialmente e intelectualmente, nos anos 60, com guerras perdidas – Argélia, África, Vietname – escritores reencontrados ou descobertos – Nietzsche, Sorel, Péguy, Proust, Scott Fitzgerald, Hemingway, Huxley, Malraux, Jünger, Drieu de la Rochelle; mais os clássicos portugueses de Camilo a Eça e a Pessoa; e os autores franceses e italianos do meio do século XX, os filmes italianos e americanos de 60 e 70, a música do Brel, dos Beatles e dos Rolling Stones, as cidades - Paris, Londres, Roma, Madrid… quase só Europa.
Por cá, nesta nossa polis, foram as lutas académicas, as guerras da cultura e a guerra de África. Fui a todas! À de África, no fim. Como achávamos que lutávamos – já na Faculdade - em minoria e ainda por cima contra “o sentido da História”, habituámo-nos a resistir e a preparar a guerrilha. Tive sempre a sensação de pertencer àqueles grupos especiais - ou menos especiais - que cobrem as retiradas: rebentam as pontes, minam os itinerários e fazem umas emboscadas às vanguardas inimigas para lhes retardar a marcha. Se ficarmos pelo caminho, ninguém quer saber de nós. Somos expendable. E como só retardámos, não impedimos o avanço, se temos sucesso ninguém dá por isso. Não nos condecoram nem nos agradecem. Habituámo-nos assim.
Esta é a primeira parte desta história – que acabou no exílio - na África do Sul, no Brasil, em Espanha. Depois fui para a história dos outros, para os lugares onde a História ia continuar a fazer-se. Nos anos 80 percebi que essa era a forma mais certa – e a única possível – de continuar este jogo, já que não não me curava dele e do tal “mal de l’Afrique” de que falava Psichari. E tinha questões a arrumar. Sobretudo comigo.
Fomos para a Guerra Fria com essa ideia de acertar contas. Era uma guerra de outros, mas em que podíamos fazer a diferença. Como combatentes “internacionais”, internacionalistas. Como o Bin Laden foi combater os russos para o Afeganistão, os comunistas foram para Espanha em 1936 e os zuavos pontifícios defender o Papa, no século XIX. Foi assim que entrámos a ajudar os “nossos” freedom fighters na África Austral.
Depois, por um processo que espero ter conseguido escrever e descrever no livro – e foi a primeira vez que eu próprio comecei a entendê-lo bem – as coisas mudaram: e já não queríamos ganhar a guerra – ou que “os nossos” ganhassem – mas queríamos a paz. Para todos – os nossos e os outros. E a partir da curiosidade e da vontade de a conseguir, tive a experiência e o privilégio, que também aqui ficam contados, de fazer o vaivém amigos-inimigos, azuis e encarnados, entre trégua e guerra, tendo por rede e segurança os “factores humanos” de todos – de lealdade, honra - e de interesse claro! Para um pessimista antropológico, criado na desconfiança hobbesiana do outro, não estive mal.
Porque as ideologias e as convicções políticas não escolhem nem delimitam o bem e o mal. E – ao contrário da convicção adolescente – em que as bandeiras e os partidos dividem os “bons” dos “maus”, a vida não é assim. E há um capítulo da ética – a “ética dos inimigos” – que é mais importante que muitas outras éticas faladas nelas glorificadas. Porque é o que nos une é só a nossa condição humana.
Acabámos por estar, assim, no centro de muitas coisas acontecidas no último quartel do século XX: o fim do Império português, o exílio e conspirações dos portugueses em três países e três continentes, África do Sul, Brasil, Espanha, África, América, Europa. E vimos nascer em Washington a revolução conservadora e assistimos ao final da Guerra Fria em Berlim, e às guerras civis de Angola, de Moçambique e da Guiné-Bissau.
De fascinados pelas ideias que éramos, passámos a estar mais atentos também às pessoas e às coisas. Há, nesta narrativa, uma evocação dessas pessoas –quase todas ainda vivas, mas outras mortas e violentamente – como Evo Fernandes, Ansumane Mané, Jonas Savimbi, Salupeto Pena, Jeremias Chitunda, Wilson Santos, tantos…
E também se fala da aprendizagem do exílio, que é sempre – mesmo quando as alternativas são a prisão, o silêncio e a humilhação dos vencidos não convencidos –uma humilhação e uma via-sacra. Foi aí que experimentámos outra forma de conhecer e amar a pátria, de fora para dentro, como lugar estranho e distante. E pensámos noutros, de outras bandeiras, que passaram pelo mesmo.
Depois nestas terras e nestas guerras, encontrámos e descobrimos gente extraordinária entre os nossos e os outros, entre amigos e inimigos. E eles descobriram-nos a nós.
E reaprendemos a ver as coisas e o mundo – a olhar a terra e a olhar para o céu aberto que é um privilégio da África: nas noites do Leste de Angola, nas luzes de Joanesburgo, na Ilha de Luanda – falando com comandantes guerrilheiros, soldados perdidos e generais governamentais; e voando nos Cessnas ou Dakotas por aquele céu azul pastel ou ferrete (não percebo muito de azuis), que me lembrava o céu dos poemas de Alberto Caeiro e vermos o sol nascer do Índico e desaparecer no Atlântico.
Para este livro, que levou um ano a escrever e finalizar, ouvi muita gente e entre outras, as pessoas que fazia sentido ouvir. Nem todas. Estas entrevistas, de que uma pequena parte foi utilizada ou transcrita directamente, foram também uma experiência humana e intelectual importante. Com grande confiança e generosidade, essas pessoas – uns velhos amigos, outros velhos inimigos, outros nem uma coisa nem outra - contaram-me as suas histórias nesta história, fizeram a narrativa com grande à vontade. Pela minha parte, usei os testemunhos com sobriedade e prudência. E nalguns casos, e com perda talvez para algum sensacionalismo, retirei o que sendo interessante poderia ser nocivo para os próprios ou terceiros.
Porque escrever sobre temas e factos que são sensíveis, de vida e de morte, é um exercício no fio da navalha ou do arame. Não podemos trair a confiança de pessoas que, quando trataram coisas connosco, não estavam a pensar que um dia, mesmo muito depois, contaríamos o que disseram ou fizeram então. Respeitei essa regra.
Finalmente – e sem pretensões – acho que devia este livro ao meu país, aos meus amigos, à minha Família, aos vivos e sobretudo aos mortos, que perderam tudo nestes Jogos Africanos. É também uma homenagem à memória deles. De todos.
Muito Obrigado.
Jaime Nogueira Pinto
24 de Novembro de 2008
2 Comentários:
Gostaria de agradecer a oportunidade que dá de partilhar o conhecimento sobre as relações com África e os seus principais intervenientes.
Interesso-me em particular por Moçambique, onde estive a trabalhar em projecto de área comum à que lá tem interesses.
Não tendo outro método de contacto, venho assim tentar abrir um canal de comunicação, na expectativa de ter a disponibilidade de trocar algumas impressões sobre essa área em Moçambique.
Gostaria de agradecer a oportunidade que dá de partilhar o conhecimento sobre as relações com África e os seus principais intervenientes.
Interesso-me em particular por Moçambique, onde estive a trabalhar em projecto de área comum à que lá tem interesses.
Não tendo outro método de contacto, venho assim tentar abrir um canal de comunicação, na expectativa de ter a disponibilidade de trocar algumas impressões sobre essa área em Moçambique.
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