quarta-feira, outubro 25, 2006

Mais "Memórias da Transição" - III: O clima cultural

Somos todos "hegelianos" nesta forma que temos de nos consolar com a "História acontecida", explicando à luz do seu encadeamento dos factos, a partir de certo momento, que o que foi não podia deixar de ter sido assim. Quero dizer que, por exemplo, em relação ao fim do anterior regime e à descolonização, acabamos por assumir explicações racionalizadas, objectivas, teorizando, ex post, o que se passou como inevitável.

Assim, regra geral, diz-se que não havia alternativa de continuidade a partir da saída de Salazar. Quer dizer, na época em que as potências europeias tinham renunciado às áreas imperiais - ou melhor, a permanecer nas áreas imperiais através de formas de dominação ou integração política - não era viável, um pequeno país, manter soberania nesses espaços. Também não era possível, desaparecido o criador do Estado Novo e o seu especial estatuto (recuso-me a usar "carisma", desde que a palavra se utiliza hoje para uma colecção de criaturas "festivas", políticos da "noite", futebolistas de revista "rosa", vedetas do nacional-cançonetismo ou do turbo-set), subsistir este como tal. Ou seja, não era possível "salazarismo sem Salazar" ou que o Império Português sobrevivesse ao fim do mundo eurocêntrico.
Na época, curiosamente, não nos dávamos muito conta destes problemas, que achávamos voluntaristicamente ultrapassáveis; ou fruto de uma vasta teia de interesses e pressões que pretendiam abalar a determinação nacional. E achávamos também que, se não lhes ligássemos muita importância, eles não a teriam.

Romantismo e voluntarismo

Éramos politicamente voluntaristas, isto é, românticos. É muito curioso constatar que os movimentos radicais ou totalitários do século XX, cujos chefes - estou a pensar em Lenine e Mussolini (Estaline e Hitler é mais complicado) - se reclamavam do realismo, do "politique d'abord", da lucidez estratégica no cálculo da acção - tenham fixado uma área forte de romantismo, não apenas a nível do discurso, da oratória, mas sobretudo na experiência e na sensibilidade dos quadros e militantes que lideraram.

Assim, os primeiros bolcheviques eram figuras de transição entre os revolucionários reais e apocalípticos do século XIX e figuras "literárias" de Dostoiewsky e Malraux, mais profissionais. Por sua vez, os primeiros quadros fascistas, recrutados nos "arditi", eram jovens ex-combatentes voluntários da Grande Guerra, muito mais sensíveis às frases radicais de Nietzsche e ao discurso de Marinetti sobre as máquinas que às razões de Hegel ou Gentile. Daqui não só o sentido da propaganda mas, sobretudo ao nível das gerações fundacionais, uma coerência existencial, assumindo um empenhamento em grandes projectos, um "viver heroicamente".

Este quadro de referências culturais é muito conhecido para a esquerda, e é o da esquerda revolucionária, romantizada por toda a esquerda, sobretudo a partir da França e da cultura francesa do pós-II Guerra - revivalismo da Revolução de Outubro e do Front Populaire, culto de Resistência - através do cinema de Eisenstein e Jean Renoir, da música de Brel, de Aznavour, de Léo Férré, da leitura de Sartre, de Simone de Beauvoir, e de Les Temps Modernes, do Le Monde, e do Nouvel Observateur, para o trivial em Lisboa, anos 60. E de uma "boémia" parisiense, que ia de Gérard Philippe à Greco e Saint-German des Prés.

Direitas unidas na acção

Na direita esta cultura também existiu, mas foi menos conhecida porque a cultura da "direita revolucionária", em país de direita autoritária e conservadora, não passava nem era partilhada pela direita tout court, que construíra outras "culturas" ou não tinha cultura nenhuma. Por outro lado, a esquerda dominava largamente, e não poucos "direitistas musculados" achavam a cultura - toda a cultura - "suspeita". Enquanto na esquerda, os "básicos" se reviam na correcção política da "cultura" do Le Monde.

A ofensiva da esquerda cultural e associativa, nos anos 60, determinou uma unidade de acção nas direitas, que teve os efeitos normais da acção: bipolarizar em amigos e inimigos o território. E aí, porque a novidade, o movimento, a cor, o protagonismo, perante uma esquerda que se radicalizava ideologicamente à volta do movimento estudantil e do "anticolonialismo" vinham deles, acabaram os "nacionalistas-revolucionários" por dominar. Em aliança táctica e estratégica com os conservadores e os "musculados" até porque, não havendo militantes em número suficiente para dar (a cabeça) e o corpo ao manifesto, quer nas ideias, quer no terreno a unidade era mesmo o único recurso.

Deste modo se explica que, em Lisboa e em Coimbra - e com menos intensidade no Porto, muito mais despolitizado ao tempo - se desse uma hegemonia dos "nacionalistas-revolucionários", quer em movimentos como o Jovem Portugal, quer no grupo do Combate, de Coimbra.

Uma história por fazer

Estes "mapas" estão por fazer, ou melhor por divulgar. Quem tem historiado, "de fora", estes movimentos têm sido académicos de esquerda, a quem, por muito esforço de isenção ou compreensão (que não há), falta o "ter estado lá", a vivência e a experiência de dentro. Era como se eu fosse fazer uma história do "Movimento Associativo", ou do MRPP. Não tem nada a ver. Falta-lhes o Zeitgeist vivido, o "espírito de tribo", as referências adolescentes, as memórias da luta. E não se libertaram do preconceito de "superioridade moral" - e sempre da arrogância intelectual - que a Esquerda tem em relação "à direita": que esta, a Direita, está intrinsecamente errada, ou porque é ignorante ou porque está de má fé. Infelizmente, no universo da direita há muita gente - a quem faltou militância e risco no tempo certo - que acata esta "ordem" da esquerda e age em conformidade ou dependente dela. Lá iremos.
(continua)

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