terça-feira, outubro 03, 2006

A transição (Apontamentos quase pessoais) I


Salazar (1889-1970) . Marcelo Caetano (1906- 1980)



Estava um tempo de Outono "clássico", com dias amenos, solarentos, típicos da estação, naquele Setembro de 1968: manhãs claras, de ar fino; meios-dias mais quentes, tardes de luz de Lisboa, a acabarem e esfriarem em crepúsculos longos. Um Outono antigo...

Eu tinha cadeiras de 2ª época em Direito, duas, para passar para o quinto ano; nos intervalos de estudo intensíssimo, seguia, como os portugueses na idade da razão política, as vicissitudes da crise e da substituição de Salazar, em coma desde o princípio de Setembro. Trabalhava, também, no Telejornal da RTP, como redactor. Éramos aí cerca de 20 pessoas, contando com o "trio" do desporto.

Salazar era para nós , e para todos os portugueses nascidos depois da Grande Guerra o detentor e símbolo do poder, onde estava há 40 anos. Um poder patriótico, paternalista, benigno, pedagógico, tranquilizante, para uns; opressivo, ditatorial, injusto, irracional para outros. E talvez indiferente para a maioria. Tínhamos o seu retrato nas paredes das salas de aulada escola primária; na minha, no Colégio do Campo da Regeneração no Porto, estava jovem, de perfil, ao lado um Carmona com excelente aspecto de general inglês- magro, pequeno, de bigode; o Salazar dessas fotos, em fundo sépia, tinha perfil do "homem forte" dos anos trinta.Quanto a Carmona já tinha morrido,mas o director e proprietário do colégio,o professor Alberto Dias Neto Guimarães,nunca o tirou.Não por fé política,pois,como repetia, “não era da Situação”...Talvez para poupar.

Salazar chegara ao poder, chamado pelos militares, para resolver o problema crónico das Finanças Públicas. Tinha-o resolvido, graças à base de estabilidade autoritária e a uma disciplina orçamental em tempo de Estado pequeno; e também com o dinheiro emigrado para Londres a regressar, atraído pela estabilidade e ordem que o novo regime garantia.

Resolvido o problema financeiro e porque entretanto fizera por isso, Salazar impuzera-se como "o político" da Ditadura Militar e o civil que ia preparar a transição para o novo Estado; em 1932 sucedera ao Gen. Domingos de Oliveira, como chefe do Governo; em 1933 era referendada a Constituição nacional-autoritária e corporativa que tinha congeminado.

Depois, o país ia viver quase sempre em estado de excepção exterior, apesar da estabilidade interna: de 1936 a 1939 foi a Guerra de Espanha, o apoio aos nacionalistas, o equilíbrio entre os britânicos e os poderes fascistas aliados de Franco no conflito; e na sequência a II Guerra Mundial em que Salazar optou e conseguiu uma neutralidade, primeiro "neutra", depois "colaborante", bem articulada com Franco. Salazar convenceu os ingleses a não intervirem em Portugal e nos Açores, garantindo-lhes a neutralidade de Franco; Franco fizera promessas a Hitler, guardando a reserva ardilosa das contra-partidas impossíveis e enviando, como penhor, a Divisão Azul para a Frente Russa, divisão sucessivamente comandada por Muñoz Grandes e Esteban Infantes. Assim cumprira, no capítulo do esforço anti-comunista, em que era sincero, e livrara-se, em Espanha, dos mais ardentes pró-alemães, voluntários para um expedição duríssima, em que muitos ficaram. José Maria Gironella fala disso, no 3º volume da sua trilogia da Guerra de Espanha, memorável mas hoje esquecida - Ha estallado la Paz.

Acabada a guerra mundial, Salazar e Franco foram "salvos" da globalização democrática, pelo começo da Guerra Fria. O "establishment" norte-americano, com Truman, democrático mas realista, percebia a vantagem dos regimes peninsulares, no novo quadro. E sabia que em Portugal e em Espanha, não havia condições de fundo para uma democracia liberal estabilizada, que as oposições seriam hegemonizadas pelos comunistas. E que, além disso, os líderes peninsulares contavam ainda com o apoio das classes médiasnascentes, da Igrejae dos militares. Seriam as condições de fundo criadas nos trinta anos seguintes, com o desenvolvimento económico-social e o empowerment político das classes médias, resultantes da estabilidade dos autoritarismos,que trariam a base social de apoio para as transições democráticas.

Nos anos cinquenta, Salazar era a coqueluche dos conservadores franceses e dos católicos tradicionais de toda a Europa. Mas não só. Se uns lhe chamavam "Le sage de l'Occident" para os conservadores americanos era um ditador moderno,incorruptível com ar de businessman ou banqueiro .. "Salazar forte e modesto" era o título de um artigo que lhe dedicava as Selecções do Reader's Digest, a popularíssima colectânea nos anos cinquenta.

A seguir continuaram as crises internacionais e nacionais: da Índia Portuguesa, em 1954; a candidatura de Delgado, outro "general" - antes de Botelho Moniz, Costa Gomes e Spínola - a desafiar o regime, em 1958.

E a partir de 1961, a ofensiva globalizada contra o Império português na diplomacia, no terreno, na opinião - e também entre os portugueses- marcaria a agenda e o destino de tudo.

E era o homem que protagonizara tudo isto, que ficava ali, na Casa de Saúde da Cruz Vermelha, em Benfica, esquecido depois da nomeação do seu sucessor pelo Presidente da República, contrastando com as visitas dos notáveis até então. Em coma, mais morto que vivo, nesse princípio do Outono de 1968. Há 38 anos,em 27 de Setembro de 1968.

(continua)


1 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

É algo penoso ler em fundo negro.

terça-feira, outubro 03, 2006 4:33:00 da manhã  

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