SALAZAR EM GRANDE E PEQUENO - 5: O HETERÓNIMO DE PESSOA
Concluimos com este quinto "episódio" a publicação do texto do Nuno Rogeiro, " versão alargada e anotada do texto para a série “Os Anos de Salazar”, editora Presslivre", com as respectivas notas:
"Como apontava certeiramente o belga Pol Vandromme (4), Salazar correspondia mais, sendo solteiro, à figura jurídica do “bom pai de família”, do que ao leão Mussoliniano, forçado a “viver perigosamente”. E, católico e crente (isto é, politizado e confesso), aproximar-se-ia mais do Cardeal Richelieu, do que de qualquer Rei ou Imperador.
Um Richelieu curioso, colocado no poder e protegido pelos mosqueteiros, mas cuja política começou a diferir da destes, quando os militares quiseram fazer política.
Conservador de outros tempos, de outro país, de outro mundo, tradicionalista e homem da terra, tirou no entanto o tapete aos monárquicos, em jubilosa esperança pela restauração da monarquia. Ele próprio militante católico, “subversivo”, da Primeira República, mostrou que detestava a violência tribal, e distanciou-se muito cedo de Rolão Preto e das suas milícias, mas também das fantasias da “Ordem Nova”, de Marcello Caetano, e dos “Fifis”, de António Ferro.
Foi esta atitude de grande ordenador do espaço, de meticuloso “director, e não administrador”, como referia a Acheson, de tirano do senso comum, de obcecado pela ordem, num país caricaturalmente desordenado, que alienou, desde logo, espíritos como o de Fernando Pessoa.
Mas Salazar, como já escrevi, é um dos seus heterónimos por assumir.
“Outro eu”, porquê?
Em que medida Salazar incarna algum elemento pessoano oculto, alguma camada não consciente, ou recalcada, algum desejo sublimado, ou uma mera coexistência de dois seres, diferentes, no mesmo corpo?
Não é certamente por causa da elegíaca e elegante “Mensagem”, patrocinada pelo Secretariado da Propaganda Nacional. Em muitos aspectos, a aventura Pessoana, quixotesca e sonhadora, chocava com o planeamento logístico do Salazar-Sancho Pança.
Não é por causa do “nacionalismo místico” de Pessoa. O de Salazar era ordenado, bem comportado e “não agressivo”.
Não é por causa do cosmopolitismo de Pessoa, o trânsfuga de Durban, o sonhador inglês, o correspondente do sinistro Aleister Crowley, o primeiro publicista português da Coca Cola (com o “Primeiro Estranha-se/Depois Entranha-se”, de 1928). Embora curioso e atento face à política internacional, Salazar usava apenas as palavras necessárias – e suficientes – para descrever um pensamento, e não para o ocultar, ou realçar.
Salazar foi o heterónimo de Pessoa, na precisa medida em que incarnou todos os elementos que o poeta incluiu no Interregno, como necessários e urgentes, para a salvação da pátria.
Onde Pessoa era o grande agitador, e o patrono do caos, Salazar era o grande organizador, e o padroeiro da ordem.
Poderíamos imaginar o que teria sucedido, se Pessoa tivesse vivido o Salazarismo, e não apenas o seu prelúdio. Acabaria como Rolão Preto...ou como António Ferro?
Claro que o “lugar exacto” de Pessoa e de Salazar, nos grandes concursos historiográficos, está em aberto, embora muitos já tenham expresso uma opinião.
Mas, como dizia Torga:
“Chegar à India ou Não
É um íntimo desígnio da vontade.
Os Fados a favor e a desfavor
São argumentos da Posteridade”.
(1) Uma das proclamações importantes de Salazar, visivelmente dirigida ao nacional-socialismo, e feita precocemente, em 1934, diz assim:
“(...) e todavia é preciso afastar de nós o impulso tendente à formação do que poderia chamar-se o Estado totalitário. O Estado que subordinasse tudo sem excepção à ideia de nação ou de raça por ele representada, na moral, no direito, na política e na economia, apresentar-se-ia como ser omnipotente, princípio e fim de si mesmo, a que tinham de estar sujeitas todas as manifestações individuais e colectivas, e poderia envolver um absolutismo pior do que aquele que antecedera os regimes liberais, porque ao menos esse outro não se desligara do destino humano” (in “O Estado Novo português na evolução política europeia”, Lisboa, 26 de Maio de 1934).
Mais à frente, denuncia o paganismo residual destes regimes, e vaticina-lhes o fim, na revolução ou nas guerras de religião, “mais graves do que as antigas”.
(2) in D. Acheson, Present at the Creation, Londres 1969, pág. 628.
(3) P. Lewis, “Salazar’s Ministerial Elite, 1932-1968”, in Journal of Politics, vol.40, pp. 622-647. Lewis estuda o problema da tensão entre lealdade e competência, nos regimes autocráticos, e lamenta que a “estreiteza doutrinal” da liderança tivesse alienado muitos jovens promissores de uma carreira na política superior, mas parece moderar o seu juízo face a alguns elementos paradoxais do Estado Novo.
(4) No clássico L’Europe en Chemise, Pardes, 2002 (reedição)."
"Como apontava certeiramente o belga Pol Vandromme (4), Salazar correspondia mais, sendo solteiro, à figura jurídica do “bom pai de família”, do que ao leão Mussoliniano, forçado a “viver perigosamente”. E, católico e crente (isto é, politizado e confesso), aproximar-se-ia mais do Cardeal Richelieu, do que de qualquer Rei ou Imperador.
Um Richelieu curioso, colocado no poder e protegido pelos mosqueteiros, mas cuja política começou a diferir da destes, quando os militares quiseram fazer política.
Conservador de outros tempos, de outro país, de outro mundo, tradicionalista e homem da terra, tirou no entanto o tapete aos monárquicos, em jubilosa esperança pela restauração da monarquia. Ele próprio militante católico, “subversivo”, da Primeira República, mostrou que detestava a violência tribal, e distanciou-se muito cedo de Rolão Preto e das suas milícias, mas também das fantasias da “Ordem Nova”, de Marcello Caetano, e dos “Fifis”, de António Ferro.
Foi esta atitude de grande ordenador do espaço, de meticuloso “director, e não administrador”, como referia a Acheson, de tirano do senso comum, de obcecado pela ordem, num país caricaturalmente desordenado, que alienou, desde logo, espíritos como o de Fernando Pessoa.
Mas Salazar, como já escrevi, é um dos seus heterónimos por assumir.
“Outro eu”, porquê?
Em que medida Salazar incarna algum elemento pessoano oculto, alguma camada não consciente, ou recalcada, algum desejo sublimado, ou uma mera coexistência de dois seres, diferentes, no mesmo corpo?
Não é certamente por causa da elegíaca e elegante “Mensagem”, patrocinada pelo Secretariado da Propaganda Nacional. Em muitos aspectos, a aventura Pessoana, quixotesca e sonhadora, chocava com o planeamento logístico do Salazar-Sancho Pança.
Não é por causa do “nacionalismo místico” de Pessoa. O de Salazar era ordenado, bem comportado e “não agressivo”.
Não é por causa do cosmopolitismo de Pessoa, o trânsfuga de Durban, o sonhador inglês, o correspondente do sinistro Aleister Crowley, o primeiro publicista português da Coca Cola (com o “Primeiro Estranha-se/Depois Entranha-se”, de 1928). Embora curioso e atento face à política internacional, Salazar usava apenas as palavras necessárias – e suficientes – para descrever um pensamento, e não para o ocultar, ou realçar.
Salazar foi o heterónimo de Pessoa, na precisa medida em que incarnou todos os elementos que o poeta incluiu no Interregno, como necessários e urgentes, para a salvação da pátria.
Onde Pessoa era o grande agitador, e o patrono do caos, Salazar era o grande organizador, e o padroeiro da ordem.
Poderíamos imaginar o que teria sucedido, se Pessoa tivesse vivido o Salazarismo, e não apenas o seu prelúdio. Acabaria como Rolão Preto...ou como António Ferro?
Claro que o “lugar exacto” de Pessoa e de Salazar, nos grandes concursos historiográficos, está em aberto, embora muitos já tenham expresso uma opinião.
Mas, como dizia Torga:
“Chegar à India ou Não
É um íntimo desígnio da vontade.
Os Fados a favor e a desfavor
São argumentos da Posteridade”.
(1) Uma das proclamações importantes de Salazar, visivelmente dirigida ao nacional-socialismo, e feita precocemente, em 1934, diz assim:
“(...) e todavia é preciso afastar de nós o impulso tendente à formação do que poderia chamar-se o Estado totalitário. O Estado que subordinasse tudo sem excepção à ideia de nação ou de raça por ele representada, na moral, no direito, na política e na economia, apresentar-se-ia como ser omnipotente, princípio e fim de si mesmo, a que tinham de estar sujeitas todas as manifestações individuais e colectivas, e poderia envolver um absolutismo pior do que aquele que antecedera os regimes liberais, porque ao menos esse outro não se desligara do destino humano” (in “O Estado Novo português na evolução política europeia”, Lisboa, 26 de Maio de 1934).
Mais à frente, denuncia o paganismo residual destes regimes, e vaticina-lhes o fim, na revolução ou nas guerras de religião, “mais graves do que as antigas”.
(2) in D. Acheson, Present at the Creation, Londres 1969, pág. 628.
(3) P. Lewis, “Salazar’s Ministerial Elite, 1932-1968”, in Journal of Politics, vol.40, pp. 622-647. Lewis estuda o problema da tensão entre lealdade e competência, nos regimes autocráticos, e lamenta que a “estreiteza doutrinal” da liderança tivesse alienado muitos jovens promissores de uma carreira na política superior, mas parece moderar o seu juízo face a alguns elementos paradoxais do Estado Novo.
(4) No clássico L’Europe en Chemise, Pardes, 2002 (reedição)."
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