Sobre a Identidade Nacional
O tema não é novo. Há registo destas matérias desde os escritores da Bíblia que argutamente se perguntavam, numa matriz normalmente teológica, quem eram os israelitas. A confusão agudizou-se com a conquista da Palestina, com a passagem de um governo de profetas e juizes a um governo monárquico, que depressa adoptou outros deuses, fazendo altares às divindades das suas esposas importadas . Bem protestaram os profetas, mas os Reis mais sábios não resistiram como David e Salomão. O problema da identidade foi, de facto, neste caso único, assegurado por uma única instituição: Os Livros Sagrados na leitura da Sinagoga; e a religião revelada desde Abraão manteve-se nas suas diversas facetas tecendo a teia da identidade, que vai desde os instalados no país como os sabras até aos judeus espalhados pelo mundo e reunidos à volta da sua Sinagoga, funcionando em rede desde há milénios. Mas nos países não hebreus o problema foi outro. A Divindade não conferia uma identidade que sobrepujasse a tribo, o clã, a etnia, o grupo familiar. Foi necessário construi-la de raiz num amassar de tradições díspares até atingir uma plataforma reconhecida. O tempo ditou as sentenças habituais. A situação geográfica também. Diz-se isto porque o tempo consolida o construído e dá corpo inteiro a tradições veneráveis e ilógicas. Mas Vilfredo Pareto explicou isso e não adianta aprofundar mais que ele. O tempo como grande regulador ganhou um novo significado nesta matéria, pois também pode jogar ao contrário: destruir identidades. E porquê invocar a Geografia? As sociedades com múltiplas fronteiras, situadas no centro de grandes interesses têm grandes dificuldades em se afirmarem e regra geral só o combate vitorioso nas diversas frentes lhes assegura a sobrevivência. O fraco desaparece. No ambiente conturbado do nosso tempo acossado por males insuportáveis o mesmo problema se revela. E é por isso que quando a Fundação Gulbenkian faz uma longa conferência sobre "Que valores para este tempo?" com especialistas e filósofos das sete partidas do mundo é por algo também lhes tocou, nomeadamente a Fernando Gil e a Rui Vilar. Não penso que a erosão do sujeito, da racionalidade, da beleza, da história (que Robert Kagan irá explicar), do verdadeiro e do bem, estejam em causa, por enquanto. Mas quando se começa hoje a perguntar pela identidade é porque algo anda mal. Em Portugal, por essa altura, começa outra vez a ser popular ler Luis Vaz, e perguntar-lhe o que é isso de ser português. O cronista medieval Fernão Lopes, e outros como Zurara, o sapateiro de Trancoso, o Padre António Vieira, José Régio, António Quadros, Agostinho da Silva, Lima de Freitas, Pinharanda Gomes e muitos outros autores que até passam por antepassados socialistas, tentaram explicar o que isso era. Foi um modo de explicitar ou até de acalmar esta ansiedade feita de saudades de Teixeira de Pascoais, das inquietações de Fernando Pessoa, do terrunho de Miguel Torga, da brutalidade de Aquilino Ribeiro, das suavidade mansas dos poetas da pátria, que falaram dela como uma entidade com identidade própria e não vegetativa. E tudo foi contribuindo para o que nós chamamos identidade: a língua, a geografia do espaço muito maritimizado, a teia histórica tecida desde as cantigas de amor, e teia de sangue tecida pelas batalhas da identidade sobrevivente. Mesmo também uma teia espessa de informações, verificadas, míticas, imaginadas pelos monges de Alcobaça nas suas noites de insónia, Fernão Lopes e Castanheda, os Roteiros de Dom João de Castro e as narrativas da guerra que nos chegam pelas mãos hábeis de escritores antigos que nos falam de pelejas longínquas e de narradores modernos como Rui Teixeira que testemunham que o país esta a reagir positivamente a uma longa guerra, a última, travada em África .Tudo isto faz parte de um todo que somos nós, que vivemos num período decifrado como um tempo de insegurança e orfandade, nos confins extremos da periferia europeia, mas numa ponte marítima para a América. Por ignorância contumaz, somos culpados de passividade imbecil, mestres do nada fazer, senhores do vinho e do sonho, homens e mulheres que não correspondem ao que Jorge Luis Borges escreveu sobre nós, ao retratar-nos no seu livro de poesia no menino rei que se perdeu no areal de Marrocos.
5 Comentários:
Um prazer total ler e reler esta escrita!
Cortante e luminoso — como um clarão na noite escura!
Nunca é demais (re)lembrar a natureza das coisas e o que realmente importa!
Brilhantemente bem escrito!
Caro António. É um prazer ver-te por estas andanças... ainda que sem "Murganheira" :-)
Um forte abraço
Enviar um comentário
Subscrever Enviar feedback [Atom]
<< Página inicial