Aborto: mais argumentos inteligentes pelo "sim"
Vítor Dias, um esforçado intelectual do PCP sempre em pé de guerra contra os terríveis "sofismas" de quem é contra a liberalização do aborto, escreveu num dos seus artigos que "a situação de reais e continuados abortos clandestinos" é "esta, sim, a maior 'liberalização' que imaginar se pode". É óbvio: se forem legais, a "liberalização" é muito menor. Para quem não esteja a perceber a parte do meio, ou seja o encadeamento lógico deste raciocínio, nada melhor do que uma comparação: o assalto à mão armada, por exemplo, está tão mais verdadeiramente "liberalizado" quanto mais for punido pela lei - e tanto menos "liberalizado" quanto mais a lei o encorajar.
2 Comentários:
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Não li o artigo que cita e não me posso pronunciar em absoluto mas, pela citação, parece-me que o vínculo que liga a «situação real» à «maior liberalização possível» é, também ele, irónico. Ou seja: o que o articulista -- PCP ou não PCP, pró- ou anti-despenalização -- está a lembrar é a extraordinária ausência de lógica do estribilho «não há mulheres presas, pois não?»...
Como escrevi noutros locais: «Se uma pena que manda para a cadeia é boa porque não se aplicando inibe o crime, então porque não instaurar a pena de morte para o mesmo crime, que não se aplicando terá um efeito ainda mais inibitório, contribuindo assim ainda mais para a felicidade dos cidadãos embriões e suas mães aflitas, sem prejuízo da nossa tradicional hostilidade à aplicação da referida pena capital? Aliás, a ideia introduzida pela brigada do «SIM à pena, mas NÃO à sua aplicação» pode ser ainda mais frutífera: se restaurarmos as penas de suplício e os tratos de polé generalizados para todos os crimes, depois, não aplicando as penas, os tribunais poderão contribuir em muito para reduzir a criminalidade sem declínio civilizacional.»
Mas deixemos um pouco a pythoniana questão penal e, porque de lógica se falou, consideremos antes a perigosa pseudo-ciência recheada de ilogismos que tem acompanhado muitas vezes o «SIM à vida a todo o custo»:
Ao contrário do que por vezes se afirma, a comunidade científica não diverge de forma significativa sobre o «início da vida humana», a não ser quando se põe -- num esforço para ser entendida pelos leigos, louvável mas por vezes desastroso -- a utilizar clichés anti-científicos para ajudar a explicar situações que se prestam a grande confusão (e claro que também há cientistas pataratas, mas contra isso não há remédio). Vejamos então como se pode ajudar a esclarecer o assunto.
Do que se deve falar não é de um I1 = «início da vida humana» (implicando este conceito longas cadeias, individualizadas e ininterruptas, que obviamente não excluem espermatozóides nem óvulos e se estendem desde a época Pliocénica em que os seus primeiros elos adquiriram características humanas até à actualidade), mas de outros dois «inícios»: um I2 = «início da vida de um indivíduo humano» que é o momento da fecundação de um óvulo por um espermatozóide (esquecendo aqui, para maior simplicidade, a hipótese de gemelidade verdadeira -- a partir de um único zigoto -- que complica um pouco a questão no tempo, mas que de qualquer modo não altera ao nível da detecção eficaz a possibilidade da presença de uma vida individual singular); e um I3 = «início eticamente mais desejável para que a um indivíduo humano ainda não susceptível de vida autónoma sejam reconhecidos direitos pela sociedade».
O único «início» arbitrário que depende de nós -- e que desejaríamos optimizar do ponto de vista científico e ético (científico quanto à qualidade da informação objectiva, ético quanto à das opções de ordem moral) é I3. Como é evidente, até aqui toda a verdadeira ciência está de acordo e mais não tem a dizer. O desacordo é a partir daqui, é de ordem ética, e toma forma apenas no que respeita à fixação de I3 pelas sociedades humanas.
Para mim, o melhor I3 a que se deve apontar é o do início de um sistema nervoso central em funcionamento no feto, por razões que têm a ver com a sensibilização à dor e a ausência de percepção de uma existência social futura por parte do mesmo. Para outros, a escolha deve ser I3 = I2 o que exclui a pílula abortiva dita «do dia seguinte», mas permite outros métodos de contracepção. Para outros ainda, geralmente influenciados de forma mais exclusiva por compulsões de ordem religiosa, será até I3 = I1 (!) e esses votariam NÃO até em relação ao simples preservativo que «assassina» espermatozóides.
Mas uma coisa não é discutível em termos científicos e é isto que se deveria repetir exaustivamente perante a selva de disparates em que progressivamente nos vamos encontrar mergulhados: que o único «início» que está em debate é o I3.
Os cientistas com posições mais radicais sobre o assunto deveriam ser os primeiros a evitar introduzir noções pseudo-científicas na discussão. Pelo que tenho observado, os que mais abundantemente faltam a este princípio são, de longe, os radicais do NÃO.
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