A transição (II): Os Candidatos
A Censura tinha instruções para não deixar passar notícias sobre o tema da escolha do sucessor de Salazar, sobre o processo de decisão em que o PR Américo Thomaz ia ouvindo os "notáveis" que entendia. Tudo "institucional", constitucional, legal, nas regras do jogo da Constituição de 33, pensada, praticada e completamente assente num homem que agora estava fora de jogo.
À portuguesa, e à portuguesa "direitinha", sem causar ondas, os Conselheiros de Estado e outras figuras gradas do Regime foram dizendo de sua justiça, tratando mais de perfis do que de pessoas.
Os "papabili" eram os barões considerados "operacionais" para esta função executiva: Marcello Caetano - na dupla condição de "jurista da coroa" e político "executivo" - tinha pensado e discutido teoricamente o regime no seu "Curso de Ciência Política e Direito Constitucional" e reflectira sobre a sua problemática e viabilidade, em múltiplas conferências e ensaios. Tinha sido militante nacionalista, "anti-democrata" confesso, nos tempos da Ordem Nova; era integralista da segunda geração; Comissário Nacional da MP, aparecendo então fardado "à fascista", ao gosto da época; depois Ministro das Colónias; e nos anos 50, depois de João Lumbrales e Pedro Theotónio Pereira, Ministro da Presidência, um cargo visto como "indicativo" de sucessor.
Demitira-se, em nome da "autonomia universitária", na crise académica de 1962. E ficara, depois, na reserva da República, dando aulas. (Foi meu professor, aliás excelente pedagogicamente, quer oral, quer por escrito, tornando "digerível até o Direito Administrativo"!). Era um conservador autoritário, oscilando entre o liberalismo aristocrático-atlântico e a percepção de uma mudança inevitável num mundo que deixara de ser eurocêntrico. Pessimista, auto-disciplinado,
Os outros candidatos, ou melhor os outros mencionados possíveis sucessores, eram Franco Nogueira, Antunes Varela, Adriano Moreira e Kaúlza de Arriaga. Franco Nogueira vinha do republicanismo histórico, fizera uma brilhante carreira na Diplomacia e como Director Geral dos Negócios Políticos, no tempo de Paulo Cunha e Marcelo Mathias, fora notado por Salazar e chamado para Ministro na solução da crise de 1961, em que o líder do Estado Novo apostara numa renovação geracional com pessoas como José Gonçalo Correia de Oliveira, Luís Maria Teixeira Pinto e Adriano Moreira.
Tornara-se notado pela visibilidade nas Nações Unidas. E era um realista radical, ao modo de Morgenthau, anglófilo e espanófobo. Andara pelos núcleos culturais da esquerda nos anos 40, crítico literário em O Diabo. A direita "dura" não gostava dele. Socialmente, sendo de uma honestidade e austeridade a toda a prova, tinha estabelecido boas relações com o establishement. Manuel Espírito-Santo Silva e Jorge de Mello, que eram as figuras líderes da Banca, da Indústria e da sociedade portuguesa, tornaram-se seus amigos, respeitavam-no e ouviam-no.
Antunes Varela representava o núcleo católico-social, a linha de influência conimbricense, que vinha de Pires de Lima. Era um jurista de grande reputação, um trabalhador incansável, mas não se lhe reconhecia grande sensibilidade política. Adriano Moreira, como Franco Nogueira, não vinha do regime. A carreira jurídica e o interesse pelos temas internacionais e os estudos africanos, tinham-no levado ao governo como Secretário de Estado do Ministério do Ultramar, com o Almirante Lopes Alves. Também na crise de 1961 - onde estivera com Kaúlza de Arriaga, contra os "conspiradores" - escolhera o "lugar certo". Era um académico, tinha um excelente estilo literário e ficara associado, no imaginário popular, a Angola 1961, à resistência; as mangas de camisa, o cigarro ao canto da boca, o chapéu atirado para trás. Uma imagem à Bogart... A "guerra" com o General Deslandes, Governador Geral de Angola e com "peso" na área militar, que Adriano demitira, levara Salazar a afastá-lo. Era também inimigo declarado de Marcello Caetano.
Kaúlza de Arriaga era um general político. Inteligente, articulado, executivo, tinha criado as tropas paraquedistas, fora responsável pela renovação das infraestruturas da Força Aérea no Ultramar; e em 1961 fora a chave e o condutor visível do "contra-golpe". Mas era "impulsivo" - o que não caía bem nas regras do tempo e a ideia de uma "remilitarização" do regime estava afastada. Os principais militares eram os primeiros a não querer um deles como chefe do Governo.
Assim postas, "informalmente", nos mentideros, as candidaturas entraram no puzzle de um regime fechado, de uma sociedade autoritária não totalitária, sem liberdade política, mas com liberdade civil, com grupos sociais autónomos e alguns jornais e revistas críticas do sistema como a República e a Seara Nova.
Marcello Caetano tinha "homens seus", na comunicação social oficial de então; além disso parece ter sido o único que, activamente por si, ou pelos seus, se mexeu pelo poder. Os outros mexeram-se contra ele, com cautela aliás, mas não por si. Deste modo, activou ou activaram por ele, o seu núcleo nos "media" - César Moreira Baptista, no SNI - Secretariado Nacional de Informação, Dutra Faria, director da ANI - Agência Nacional de Informação e Barradas de Oliveira, Director do Diário da Manhã.
Como os jornais portugueses não podiam reportar sobre o tema - começaram a publicar alguns textos autorizados da imprensa estrangeira - jornais ingleses e franceses - da área conservadora, citando os seus correspondentes em Lisboa. Os correspondentes em Lisboa falavam, precisamente, com o SNI e a ANI. E o nome de Marcello Caetano era citado como a mais provável escolha.
Aliás, com aquele espírito de reverência acrítica pelas decisões hierarquicamente superiores - um dos preços da estabilidade autoritária - ao nível dos quadros superiores e médios da burocracia, e como os "rivais" não fizerem nada por isso, uma solução a solução Marcello Caetano apareceu como a "solução". Pelo que ninguém se espantou nem se mostrou contrariado no dia 27 de Setembro, quando foram anunciadas por Américo Thomaz, a demissão de Salazar e a nomeação de Marcello Caetano.
À portuguesa, e à portuguesa "direitinha", sem causar ondas, os Conselheiros de Estado e outras figuras gradas do Regime foram dizendo de sua justiça, tratando mais de perfis do que de pessoas.
Os "papabili" eram os barões considerados "operacionais" para esta função executiva: Marcello Caetano - na dupla condição de "jurista da coroa" e político "executivo" - tinha pensado e discutido teoricamente o regime no seu "Curso de Ciência Política e Direito Constitucional" e reflectira sobre a sua problemática e viabilidade, em múltiplas conferências e ensaios. Tinha sido militante nacionalista, "anti-democrata" confesso, nos tempos da Ordem Nova; era integralista da segunda geração; Comissário Nacional da MP, aparecendo então fardado "à fascista", ao gosto da época; depois Ministro das Colónias; e nos anos 50, depois de João Lumbrales e Pedro Theotónio Pereira, Ministro da Presidência, um cargo visto como "indicativo" de sucessor.
Demitira-se, em nome da "autonomia universitária", na crise académica de 1962. E ficara, depois, na reserva da República, dando aulas. (Foi meu professor, aliás excelente pedagogicamente, quer oral, quer por escrito, tornando "digerível até o Direito Administrativo"!). Era um conservador autoritário, oscilando entre o liberalismo aristocrático-atlântico e a percepção de uma mudança inevitável num mundo que deixara de ser eurocêntrico. Pessimista, auto-disciplinado,
Os outros candidatos, ou melhor os outros mencionados possíveis sucessores, eram Franco Nogueira, Antunes Varela, Adriano Moreira e Kaúlza de Arriaga. Franco Nogueira vinha do republicanismo histórico, fizera uma brilhante carreira na Diplomacia e como Director Geral dos Negócios Políticos, no tempo de Paulo Cunha e Marcelo Mathias, fora notado por Salazar e chamado para Ministro na solução da crise de 1961, em que o líder do Estado Novo apostara numa renovação geracional com pessoas como José Gonçalo Correia de Oliveira, Luís Maria Teixeira Pinto e Adriano Moreira.
Tornara-se notado pela visibilidade nas Nações Unidas. E era um realista radical, ao modo de Morgenthau, anglófilo e espanófobo. Andara pelos núcleos culturais da esquerda nos anos 40, crítico literário em O Diabo. A direita "dura" não gostava dele. Socialmente, sendo de uma honestidade e austeridade a toda a prova, tinha estabelecido boas relações com o establishement. Manuel Espírito-Santo Silva e Jorge de Mello, que eram as figuras líderes da Banca, da Indústria e da sociedade portuguesa, tornaram-se seus amigos, respeitavam-no e ouviam-no.
Antunes Varela representava o núcleo católico-social, a linha de influência conimbricense, que vinha de Pires de Lima. Era um jurista de grande reputação, um trabalhador incansável, mas não se lhe reconhecia grande sensibilidade política. Adriano Moreira, como Franco Nogueira, não vinha do regime. A carreira jurídica e o interesse pelos temas internacionais e os estudos africanos, tinham-no levado ao governo como Secretário de Estado do Ministério do Ultramar, com o Almirante Lopes Alves. Também na crise de 1961 - onde estivera com Kaúlza de Arriaga, contra os "conspiradores" - escolhera o "lugar certo". Era um académico, tinha um excelente estilo literário e ficara associado, no imaginário popular, a Angola 1961, à resistência; as mangas de camisa, o cigarro ao canto da boca, o chapéu atirado para trás. Uma imagem à Bogart... A "guerra" com o General Deslandes, Governador Geral de Angola e com "peso" na área militar, que Adriano demitira, levara Salazar a afastá-lo. Era também inimigo declarado de Marcello Caetano.
Kaúlza de Arriaga era um general político. Inteligente, articulado, executivo, tinha criado as tropas paraquedistas, fora responsável pela renovação das infraestruturas da Força Aérea no Ultramar; e em 1961 fora a chave e o condutor visível do "contra-golpe". Mas era "impulsivo" - o que não caía bem nas regras do tempo e a ideia de uma "remilitarização" do regime estava afastada. Os principais militares eram os primeiros a não querer um deles como chefe do Governo.
Assim postas, "informalmente", nos mentideros, as candidaturas entraram no puzzle de um regime fechado, de uma sociedade autoritária não totalitária, sem liberdade política, mas com liberdade civil, com grupos sociais autónomos e alguns jornais e revistas críticas do sistema como a República e a Seara Nova.
Marcello Caetano tinha "homens seus", na comunicação social oficial de então; além disso parece ter sido o único que, activamente por si, ou pelos seus, se mexeu pelo poder. Os outros mexeram-se contra ele, com cautela aliás, mas não por si. Deste modo, activou ou activaram por ele, o seu núcleo nos "media" - César Moreira Baptista, no SNI - Secretariado Nacional de Informação, Dutra Faria, director da ANI - Agência Nacional de Informação e Barradas de Oliveira, Director do Diário da Manhã.
Como os jornais portugueses não podiam reportar sobre o tema - começaram a publicar alguns textos autorizados da imprensa estrangeira - jornais ingleses e franceses - da área conservadora, citando os seus correspondentes em Lisboa. Os correspondentes em Lisboa falavam, precisamente, com o SNI e a ANI. E o nome de Marcello Caetano era citado como a mais provável escolha.
Aliás, com aquele espírito de reverência acrítica pelas decisões hierarquicamente superiores - um dos preços da estabilidade autoritária - ao nível dos quadros superiores e médios da burocracia, e como os "rivais" não fizerem nada por isso, uma solução a solução Marcello Caetano apareceu como a "solução". Pelo que ninguém se espantou nem se mostrou contrariado no dia 27 de Setembro, quando foram anunciadas por Américo Thomaz, a demissão de Salazar e a nomeação de Marcello Caetano.
10 Comentários:
Excelente texto. Excelente blog. Já está nos favoritos.
Excelente texto e excelente blog.
Corrigir um lapso. Pedro Theotónio Pereira foi ministro da Presidência depois de Marcello Caetano, entre 1958 e 1961. Foi-o imediatmente depois de ser chamado de Londres por Salazar onde desde 1953 era embaixador. Salazar o despachou-o, pela segunda vez, para Washington depois da crise do Santa Maria.
Não sei se consigo concordar com a hipótese Kaúlza para suceder a Salazar. Retrospectivamente acho impossível. Vendo com os olhos de então tenho muitas dúvidas. Uma coisa seria falar-se, outra ser-se. Talvez houvesse quem o desejasse e o próprio se andasse a disponibilizar (tal como todos os outros de que falou). Já agora recordar que nas suas memórias Américo Thomaz lamentou não ter podido escolher, em 1968, Theotónio Pereira para suceder a Salazar (será que estava a ser sincero?) e que Salazar terá dito à irmã mais nova de Theotónio Pereira, já depois do acidente no Estoril, que gostaria que fosse o seu primeiro subsecretário de Estado das Corporações e Previdência Social a suceder-lhe. Parece pouco crível, mas está escrito. Como se sabe Theotónio Pereira não era candidato por, desde 1962/3, se encontrar muito doente. Apoiou o seu amigo Marcello depois de se ter posto de lado a possiblidade de Salazar continuar prsidente do Conselho, mesmo incapacitado (a primeira solução apoiada por Theotónio Pereira).
De qualquer modo, parece-me que em Setembro de 1968 só Marcello e Franco Nogueira competiam pelo lugar. Mas o primeiro levava muita vantagem. Seria curioso perceber porque razão a elite que apoiava o regime não tinha nenhuma surpresa para apresentar. Ou o que teria acontecido se Marcello Caetano já não estivesse disponível.
A mim, o que me interessaria conhecer melhor, era a «medida» da relação/construção do Estado Novo e os Integralistas ... fica-se com a impressão que estes quase tudo influenciaram, à excepção da reinstauração da Monarquia.
Na minha modesta opinião os integralistas tiveram bem pouca importância. Eram e foram uma espécie de partido minoritário no seio do Estado Novo. E só a chamada "segunda geração", muito diferente, em quase tudo, da primeira. Convém não esquecer que os que contavam dessa segunda geração se contavam pelos dedos de duas mãos e ainda sobravam dedos. Há depois a questão doutrinária, que me parece pouco importante naquilo que o Estado Novo foi - mesmo na década de 1930.
Não há contraditório para esclarecer melhor ?
Excelente. Que saudades do FUTURO PRESENTE... No NORTADAS passa a leitura obrigatória.
Bibliografia Integralista (a talho de foice, ou talvez não...):
«O Integralismo Lusitano», Leão Ramos Ascensão, Edições Gama, Série A — Política, n.º 7, Lisboa, 1943.
«O Pensamento Integralista Perante o Estado Novo», Rivera Martins de Carvalho (com Textos de Rolão Preto, Hipólito raposo, António sardinha, Luís de Almeida Braga, Alberto de Monsaraz, Leão Ramos Ascensão, José Pequito Rebello), Biblioteca do Pensamento Político, Caderno n.º 3, Lisboa, 1971.
Boas Leituras!
Errata: Raposo, António Sardinha (na 6.ª linha, obviamente)
Dois textos muito interessantes.
Parece especialmente interessante o seu testemunho sobre o peso, já nesta altura e ainda que enviesado, dos media na sucessão.
Também creio que o texto aponta para a razão fundamental porque Marcelo Caetano, jurista da coroa num regime de jurista, tenha acabado por prevalecer.
Ele era o sucessor tanto mais natural quanto, afastado Teotónio Pereira por doença, tinha face a ele «novatos» e «convertidos», que parecem ter sido vistos por muitos notáveis da Situação como outsiders. Paradoxalmente Marcelo tinha portanto quer o estatuto de fundador do regime, de delfim de Salazar, como também de crítico e potencialmente reformista. Era difícil montar uma oposição sólida a ele nestas condições.
Um ponto ficou por esclarecer: por que é dos três «presidenciáveis» ministros da presidência de Salazar, apenas Teotónio Pereira (apesar de doente) e Caetano são mencionados. Por que é que não se fala (falou?) de Costa Leite (Lumbrales)?
Bem lembrado! De facto, na altura falou-se nele, como foi, aliás, referido na monumental biografia de Salazar da autoria do Embaixador Franco Nogueira.
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