Neos e velhos "cons"
Mário Soares , in O Público , 31-10-2006
cultura - debate - entrevistas - opinião






Somos todos "hegelianos" nesta forma que temos de nos consolar com a "História acontecida", explicando à luz do seu encadeamento dos factos, a partir de certo momento, que o que foi não podia deixar de ter sido assim. Quero dizer que, por exemplo, em relação ao fim do anterior regime e à descolonização, acabamos por assumir explicações racionalizadas, objectivas, teorizando, ex post, o que se passou como inevitável.
às áreas imperiais - ou melhor, a permanecer nas áreas imperiais através de formas de dominação ou integração política - não era viável, um pequeno país, manter soberania nesses espaços. Também não era possível, desaparecido o criador do Estado Novo e o seu especial estatuto (recuso-me a usar "carisma", desde que a palavra se utiliza hoje para uma colecção de criaturas "festivas", políticos da "noite", futebolistas de revista "rosa", vedetas do nacional-cançonetismo ou do turbo-set), subsistir este como tal. Ou seja, não era possível "salazarismo sem Salazar" ou que o Império Português sobrevivesse ao fim do mundo eurocêntrico.

O percurso da realizadora germânica, Leni Riefenstahl ilustra um modelo de vida artística em condições de ditadura monopartidária. Os soviéticos como Sergei Eisenstein, nascido em Riga em 1898, exemplificam o mesmo problema no espaço soviético. Mas também outros realizadores como Andrei Tarkovsky (1932-1986), os escritores mais apreciados, os músicos e os artistas em geral. Num sistema totalitário ou concentracionário quem quer fazer arte só tem duas vias: o exílio (se puder) ou a afirmação da sua estética dentro dos quadros aprovados pelo partido único e pelo seu sentido de beleza e arte, com os desvios que a censura permita. Na Alemanha entre 1933 e 1945 não foi só a cineasta que trabalhou no sistema. Arno Brecker fez escultura, Albert Speer fez arquitectura, Von Karajan fez música e o Alto Comando fez a guerra, que muitos autores consideram a maior arte. Tudo indica que a vontade de deixar um traço próprio num tempo já efectivamente marcado pela ideologia e o partido, supera de longe a ideia de preços a pagar no futuro. Leni, nascida em 1902, inclinou-se cedo para a pintura e dança e só um tropeço a fez encarar a via do cinema. A sua estética, assente na harmonia das formas, na admiração da grandeza e da força, na idolatria pela montanha, não desagradava ao Sistema. A Luz Azul, de 1932, mostra a continuidade dos filmes que celebram a montanha e a que assimilam uma pureza original, um idealismo não tocado pela mão humana. Seguiram-se os documentários encomendados pelos serviços do Estado: Sieg des Glaubens, 1933; Tag der Freiheit, 1935; O Triunfo da Vontade, 1936; Os Deuses do Estádio, 1938; Tiefland,1945. O documentário sobre o encontro do Partido, o conhecido documentário Triunfo da Vontade, revelou-se o mais polémico e talvez o mais sistémico filme do Partido Nacional Socialista, onde fora empregadas técnicas de filmagem notáveis e inventivas. E, em 45, a realizadora era capturada pelos franceses e colocada em campos de concentração. As acusações são sempre as mesmas: a ritual rotina dos julgamentos dos vencedores. Dava-se com Hitler, falava com Goebbels, circulava na elite política do Sistema. É certo, mas não fazia os filmes de propaganda que os cineastas de Goebbels realizaram com grande êxito para consumo interno. Leni era admirada e protegida enquanto grande artista. Os grandes artistas soviéticos circulavam junto da elite soviética enquanto Estaline procedia às purgas e matanças dos seus conterrâneos. Nunca ninguém quis saber disso. Mas, de Leni, ocuparam-se, até quase a anular. Promoveram Karajan, silenciaram Arno Brecker, deram um tempo de fama a Speer e aos físicos que colaboraram com o regime ofereceram todas as garantias e simpatias nos USA e na URSS para aquilo que queriam ver feito: uma bomba atómica. Falava-se então da corrida aos físicos e cientistas nazis que se encontravam na investigação de ponta, dentro dos segredos da água pesada nas estações da Noruega. Dois pesos: duas medidas. Repartidos pela URSS e pelos USA desenvolveram as ciências atómicas e deram a esses vitoriosos seres as armas que eles nem sequer eram capazes de sonhar. Vejamos com as palavras da própria Riefensthal, com ela encarou esse isolamento e condenação: «A minha vida tomou-se um tecido de rumores e acusações, pelo meio das quais tive que traçar um caminho. Todas se revelaram falsas, mas por vinte anos privaram-me de criar. Tentei escrever, mas o que eu queria era fazer filmes. Tentei fazer filmes, mas não pude. Tudo ficou reduzido a nada. Só restou a minha vocação. Sim. E nesse momento estava morta». Hoje celebram-na. Revêem o Triunfo da Vontade, revêem os Deuses do Estádio (muito mais fraco), folheiam os seus álbuns sobre África e talvez um dia possam perceber que foi um terrível erro assimilar Leni a Hitler, como seria outra imbecilidade assimilar Tarkovski ou Eisenstein a Estaline. Num caso ou noutro trata-se de vias estéticas próprias desenvolvidas em condições politicas ditatoriais. É urgente compreender estas coisas que vêm de longe e ficar de lado quando os fanático extremam as suas posições. É bom, sem país, voltar a ser grego, mas melhor voltar a ser um português à solta.

Na edição do Spectator (www.spectator.co.uk) de 14 de Outubro, um artigo de Rian Malan (um dos mais famosos escritores Afrikaner anti-apartheid dos anos 70-80, autor de My Traitor's Heart) sobre a situação na África do Sul. Título (edificante): "South Africa's future will not be civil war but sad decay".
A biografia de Dean Acheson, Dean Acheson: A Life in the Cold War, de Robert L. Beisner, (Oxford University Press, 768 pp. 35 $US dólares). Acheson foi, com George Kennan e Truman o arquitecto da política de contenção norte-americana, no pós Segunda Guerra Mundial. Kennan foi o cérebro inspirador - com o famoso "longo telegrama de Moscovo" e Truman o decisor; mas entre o estratega conceptual e o poder, mediou o Secretário de Estado.
Foi condenado pelo Supremo Tribunal Peruano a prisão perpétua, Abimael Guzmán, o sinistro fundador e líder do movimento de esquerda terrorista peruano, Sendero Luminoso, criado nos anos 70, por estudantes da Universidade de Lima.
O Miguel, num post recente, refere-se aos constantes atentados à Língua Portuguesa, ao mesmo tempo em que parece estar na moda a defesa do português e da sua correcta utilização.
No passado dia 10 de Outubro passou mais um aniversário do falecimento de um dos maiores portugueses que conheci: Manuel Maria Múrias.
Ainda hoje somos muitos os que nos lembramos da alegria, do entusiasmo com que comprávamos cada semana mais um número de A RUA, onde colaborava grande parte da intelectualidade Nacional. Como lamentamos hoje que ela tenha desaparecido. Convém que nos lembremos, no entanto, que desapareceu porque não a soubemos manter. É importante que aprendamos mais esta lição e lutemos para apoiar os nossos blogues, as nossas revistas, os nossos autores, as diversas iniciativas da nossa área política.Toda a gente afecta, agora, preocupar-se com a língua portuguesa – até a RTP tem um programa com Diogo Infante. Há modas que vêm por bem. Os resultados, no entanto, não são visíveis, pelo menos para já, e talvez fosse mais profícuo pregar com o exemplo. Uma forma cada vez mais frequente de atentar contra o português – e das mais subtis – é o uso errado de expressões ou locuções, e mesmo a incapacidade de as reproduzir correctamente, uma forma subtil de "iliteracia" que indicia uma espécie de cancro episódico da memória colectiva, pois muitas vezes custa atribui-lo à pura e simples ignorância: assim, é de crer que um cronista nosso amigo saiba melhor do que ninguém que o terrorismo dos anarquistas do século XIX era considerado por eles uma "propaganda pelos actos", não "propaganda pelo exemplo" (embora, como acima se pode ver, se use "pregar com o exemplo", mas quer dizer uma coisa muito diferente de pregar à bomba). Há bem pouco tempo, na RTP que nos manda ter "Cuidado com a língua!", (bem prega Frei Tomás, faz o que ele diz, não faças o que ele faz), o apresentador de um concurso citou a conhecida expressão "tudo como dantes, quartel general em Abrantes" na versão errada e pouco menos que sem nexo de "nada será como dantes no quartel general em Abrantes"; nesse mesmo programa, foi dado como provérbio "barriga cheia, companhia desfeita" que, como toda gente costumava saber é, na realidade, "comida feita, companhia desfeita", que soa melhor e é um bocadinho menos alarve. Até um literato como EPC escreveu outro dia "cada pedra uma minhoca" quando queria dizer, suponho, "cada cavadela, sua minhoca". Tanta asneira faz do mais despreocupado de nós um pedante.
Viajei para Argel, em 4 de Outubro, via Toulouse, pois, não havendo voo directo, tem que se fazer um stop e uma conexão. Há várias possibilidades por Espanha, França ou Itália, de Barcelona e Paris a Roma e Milão. Escolhi Toulouse porque é uma dessas cidades "secundárias" da França, e as cidades secundária da Europa Ocidental são geralmente encantadoras. Tem História e histórias, com ruínas romanas, castelos feudais, catedrais góticas, praças barrocas e, além disso, muitas livrarias à volta da Place du Capitol.
Depois foi a Argélia Francesa. Nos meus primeiros passos políticos, no "JP", fundado pelo Zarco Moniz Ferreira, esta "causa" estava inscrita no topo da agenda; havia uns autocolantes Algérie Française e "L'OAS vaincra", para colar nos carros dos turistas franceses que começavam a chegar a Portugal, em força, naquele Verão de 1961, com os seus Renaults e Peugeots utilitários.
Destes anos confusos, ficam leituras e momentos que marcaram a nossa geração, como os romances de Jean Lartéguy, Les Centurions e Les Prétoriens; foi o Zarco quem me aconselhou a ler Les Centurions, no Verão de 1961, na edição da Bertrand. Mais tarde, em 1966, saiu o filme de Marc Robson (The Last Comando), que a Censura proibiu em Portugal (contar-me-ia o Rui Alvim, na ocasião, por levantar o problema da legitimidade da desobediência militar contra orientações do governo), com uma série de actores famosos encarnando os oficiais paraquedistas que eram os "heróis" de Lartéguy: Anthony Quinn fazia o Coronel Raspéguy, Alain Delon o Capitão Esclavier e - lembrei-me bruscamente há dias enquanto falava com o Chico Menezes deste livro e filme - o Maurice Ronet fazia de Boisfeuras. O Georges Segal interpretava um oficial argelino do Exército francês, primeiro com os seus camaradas e amigos do regimento, mas que, mais tarde, partiria para o outro lado, a juntar-se aos rebeldes do FLN. Quanto às mulheres eram a "clássica" Michelle Morgan, que encarnava uma socialite do jet-set argelino, que caía pelo Raspéguy (personagem ausente no livro) e a lindíssima Claudia Cardinale, que no livro tinha um romance com o Cap. Glatigny, mas no filme ficava com o Alain Delon. No nosso bando distribuímos papéis e eu, por percepção dos outros, era o Boisfeuras - o homem da agit prop e uma espécie de nacional-leninista obcecado pela acção. Havia também o Glatigny, que era nobre, tradicionalista, oriundo da Cavalaria, e um médico negro que encarnava o bom e sábio "primitivo", personagem que recomeçava a estar em voga na época (Chamo a atenção da Inês).
Outro ícone da Argélia-OAS foi o Chacal, primeiro no livro de Frederick Forsyth e depois no filme de Fred Zinnemman, com o Edward Fox no protagonista representando uma "ética profissional" do mercenário no seu duelo com Michael Lonsdale. Grande filme, grandes tempos, numa França dos anos sessenta, tão bem revisitada na rota mortífera e implacável de Fox-Chacal. Até ao fim.

O número 61 doa revista está para sair. Deixamos aqui uma antevisão da nova capa. Este número, dedicado ao tema "fronteiras", apresenta uma capa renovada em termos gráficos (embora por "motivos técnicos" as cores não tenham ficado bem reproduzidas nesta imagem). Esperamos que seja do gosto dos leitores.